domingo, 15 de dezembro de 2013

O Pacote

Mais uma vez, lá ia eu com o pacote no banco de trás. Ao menos, não chovia. O ar estava úmido, carregado. Quando abri as janelas para que ventilasse um pouco – aquilo sempre era de grande auxílio – o ar grudou nas minhas narinas como cola. As ruas estavam vazias, como era de se esperar. Na esquina, o lixo se amontoava de forma desordenada. Grandes sacolas pretas, pequenos sacos, uma lata de lixo laranja que transbordava com os dejetos que ainda ficariam ali por um par de horas. O caminhão só viria mais tarde. Enquanto isso, tudo era silêncio.

Passei pelo edifício comercial e notei que as luzes do décimo primeiro andar continuavam acesas. Sim, eu tinha certeza de que eram do décimo primeiro andar. Afinal, o que me restava daquela tarefa repetitiva era observar. Contar andares para me certificar de que eu acertara precisamente de onde a luz emanava, cansada, um brilho cansado, brilho de dia inteiro de trabalho, mas que ainda tinha muitas horas pela frente. Luzes que ardiam como os olhos extenuados de quem não tem o privilégio de fechá-los quando lhe convém. Não sabia o que funcionava ali, mas imaginava que fosse um escritório qualquer de advocacia. Um lugar onde a espera não fosse possível, onde tudo tivesse de continuar a funcionar, ainda que o bairro adormecido ao redor sugerisse o contrário. Enfim, nada muito diferente da minha situação. Minha e do meu pacote.

Contornei a praça. Vazia, silenciosa. As folhas das árvores sob a penumbra amarelada dos postes não se moviam. Aquela praça que algum dia receberia de braços abertos o meu pacote, agora tão bem embrulhado e amarrado no banco de trás. Dobrei à direita e peguei a avenida que ladeava a praia. A maresia me atingiu de frente com o seu jato de sal. Uma névoa sólida encobria o mar. Era como uma veneziana que subia e descia, a corda puxada por uma criança atrevida. A luz pálida da lua encoberta pela densidade do ar deixava entrever a silhueta da ilha ao longe. Mas tão logo aparecia, a criança travessa alteava a névoa, apenas para arriá-la em seguida. Risos. Risos que não vinham da criança imaginária, mas de um casal que perambulava pelo calçadão, um enrolado no outro. Um casal com um ar feliz, satisfeito, ar de quem acaba de amassar lençois em algum canto da cidade. Quem sabe um dia teriam um pacote...


Quando dei por mim, vi que era hora de voltar. Hora de entregar o pacote. Hora, também, de empacotar. Vera me esperava na soleira da porta. “E aí, funcionou?”. É claro que funcionara. Funcionava sempre. Era só colocar o pacote no banco de trás que ele adormecia profundamente, a carinha gorducha e macia que não denunciava nada. Nada daquela estridência que nos enlouquecia, nada daquelas lágrimas salgadas como a maresia. “Vai passar, é só uma fase!”, diziam os parentes. E, quando passasse, viria a nostalgia. A saudade daqueles tempos, tão ardente quanto os meus olhos cansados. Eu e o meu filho recém-nascido, ninguém mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário