Mais uma vez, lá ia eu com o pacote no banco de trás. Ao
menos, não chovia. O ar estava úmido, carregado. Quando abri as janelas para
que ventilasse um pouco – aquilo sempre era de grande auxílio – o ar grudou nas
minhas narinas como cola. As ruas estavam vazias, como era de se esperar. Na
esquina, o lixo se amontoava de forma desordenada. Grandes sacolas pretas,
pequenos sacos, uma lata de lixo laranja que transbordava com os dejetos que
ainda ficariam ali por um par de horas. O caminhão só viria mais tarde. Enquanto
isso, tudo era silêncio.
Passei pelo edifício comercial e notei que as luzes do décimo
primeiro andar continuavam acesas. Sim, eu tinha certeza de que eram do décimo
primeiro andar. Afinal, o que me restava daquela tarefa repetitiva era
observar. Contar andares para me certificar de que eu acertara precisamente de onde
a luz emanava, cansada, um brilho cansado, brilho de dia inteiro de trabalho,
mas que ainda tinha muitas horas pela frente. Luzes que ardiam como os olhos
extenuados de quem não tem o privilégio de fechá-los quando lhe convém. Não
sabia o que funcionava ali, mas imaginava que fosse um escritório qualquer de
advocacia. Um lugar onde a espera não fosse possível, onde tudo tivesse de
continuar a funcionar, ainda que o bairro adormecido ao redor sugerisse o
contrário. Enfim, nada muito diferente da minha situação. Minha e do meu
pacote.
Contornei a praça. Vazia, silenciosa. As folhas das árvores
sob a penumbra amarelada dos postes não se moviam. Aquela praça que algum dia
receberia de braços abertos o meu pacote, agora tão bem embrulhado e amarrado
no banco de trás. Dobrei à direita e peguei a avenida que ladeava a praia. A
maresia me atingiu de frente com o seu jato de sal. Uma névoa sólida encobria o
mar. Era como uma veneziana que subia e descia, a corda puxada por uma criança
atrevida. A luz pálida da lua encoberta pela densidade do ar deixava entrever a
silhueta da ilha ao longe. Mas tão logo aparecia, a criança travessa alteava a
névoa, apenas para arriá-la em seguida. Risos. Risos que não vinham da criança
imaginária, mas de um casal que perambulava pelo calçadão, um enrolado no outro.
Um casal com um ar feliz, satisfeito, ar de quem acaba de amassar lençois em
algum canto da cidade. Quem sabe um dia teriam um pacote...
Quando dei por mim, vi que era hora de voltar. Hora de
entregar o pacote. Hora, também, de empacotar. Vera me esperava na soleira da
porta. “E aí, funcionou?”. É claro que funcionara. Funcionava sempre. Era só
colocar o pacote no banco de trás que ele adormecia profundamente, a carinha
gorducha e macia que não denunciava nada. Nada daquela estridência que nos
enlouquecia, nada daquelas lágrimas salgadas como a maresia. “Vai passar, é só
uma fase!”, diziam os parentes. E, quando passasse, viria a nostalgia. A
saudade daqueles tempos, tão ardente quanto os meus olhos cansados. Eu e o meu
filho recém-nascido, ninguém mais.
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